Raphaela Viana nasceu em Ouro Preto. É graduada em Serviço Social pela UFOP, militante das Brigadas Populares, integrante do Coletivo OuTro Preto e trabalhadora do SUS. Tem contos e poemas publicados em plataformas virtuais como a revista literário luso-brasileira Subversa e a firma de poesia totem&pagu, também integra a antologia de contos Cartografias, da editora Primata.
Cefaleia
Atravessamos a instável ponte
dos quinze para os dezessete
isto é
achávamos que seríamos
consumidas
pelas labaredas
que eram apenas
o começo
de tudo.
Em algum momento
desse turbulento caminho
me disse Cecília
“Penso tanto nele
que não é possível
que ele não sinta
às vezes
nem uma dor de cabeça.”
Agora
me alegro um pouco
sempre que minha cabeça dói
e sempre que alguém me ocupa
insistentemente
o pensamento
imagino a conta da farmácia
aumentando
e os farmacêuticos
às voltas
com essa coisa
irremediável.
Prece peregrina
Como não tenho com a cidade
um passado
espero que ela me dê algum
futuro.
Como não tenho com a cidade
um passado
espero que ela me dê algum
trocado.
Como não tenho com a cidade
um passado
espero que ela me dê algum
consolo.
tango interrompido
para N. Notta
Caminho pelas ruas
me sobressalto com as silhuetas
parecidas com a sua
Caminho pelas ruas
ouço sua voz
nas multidões
que avançam
e retrocedem
Caminho pelas ruas
a conferir se seu nome
não está escrito
em envelopes jogados nas varandas
por carteiros cansados
Caminho pelas ruas
da cidade que você deixou
da qual só levou fotos pixeladas
a cidade em que
sua novidade
foi meu cansaço
a cidade na qual
nasci e continuei
a fazer parte
da poeira
das ruas
pelas quais caminho
as ruas em que
nos conhecemos
nos buscamos
nos perdemos
nos reencontramos
nos despedimos
que não se cansam de me acertar
com cinematografias
as ruas pelas quais
interrompemos uma caminhada
para um beijo
ou para nos olhar nos olhos
porque achávamos
que geografia
era um mero detalhe
e o nosso
tão improvável
encontro
era a prova
Caminho pelas ruas
da cidade que você deixou
antes que eu pudesse te dizer
hasta la victoria siempre
onde você me fazia cócegas
eu gritava fora Macri
e isso sempre te fazia rir
mais do que eu
Caminho pelas ruas
e nelas ainda ecoam
nossas risadas e conversas
Caminho pelas ruas
e elas mais se parecem ruínas
de um reino onírico
por nós
destruído
Caminho pelas ruas
da cidade que pretendo deixar
também
um dia
Caminho pelas ruas
tentando me convencer
de que melhor assim
você é muito desastrado
para que meu coração continue
a ser objeto
de seu malabarismo.
beatniks de pijama
Herdamos
de nossos ancestrais
o nomadismo
e cidades inteiras.
Ao percorrê-las
aprendemos
arquitetura, geografia
estatística, matemática
economia política.
Na beira
das estradas
com os polegares
estendidos
nos perguntamos
qual caminhão
transportará
nosso destino?
Te apresento feijão tropeiro
você me empresta livros italianos
contamos moedas para as cervejas
sempre tantas
desbravamos avenidas
colecionamos postos
de gasolina
vislumbramos
entre fumaça e luzes coloridas
a reencarnação do Hendrix
dando sopa
nas ruas de Belo Horizonte
tomamos milkshake no vão do MASP
vibramos com o motorista de uber chileno
em guardanapos e cadernetas
vertemos em versos
nossos corações
fazemos saraus em botecos
a refeição que nos faz rezar
tamanha gratidão
é um acarajé
devorado na sarjeta.
Ante uma ventania desatada
ouvimos um camelô
pedir calma a Iansã
e passamos a repetir a prece.
Amanhecemos
junto a cubanos hermanos
e como bons muchachos
latino americanos
bradamos
hasta siempre, comandante
e prometemos não morrer
sem antes pisar a ilha.
Dormimos no sofá de alguém
batizamos os filhos
que ainda não temos
mas ao nos vermos
capturados em retratos
sabemos que eles também serão
belos andarilhos
esquisitos aguerridos
como nós
cuidamos para que herdem
boas bibliotecas
e para que saibam que
pátria
nada mais é
do que um peito amigo.
Inexplicável
É mais comum do que se imagina
que duas pessoas nasçam
na mesma cidadezinha
dividam
na adolescência de uma delas
uma centelha de ternura
em um minúsculo momento
que só tem sua
breve existência
lembrada
graças a tudo
que ninguém desconfia
que virá depois.
É mais comum do que se imagina
que essas duas pessoas
depois se reencontrem
numa selva de concreto
ouçam as músicas
de suas adolescências
vividas sobre as mesmas pedras
de uma velha cidade íngreme.
É mais comum do que se imagina
que essas pessoas
se descubram
implicantes, resmungonas
que dividam silêncios e histórias de família.
É mais comum do que se imagina
que essas pessoas
subitamente
se afastem
como se nada
nunca
tivesse acontecido.
Arte: The New Forest de Alice Julia Argles Rawnsley (1904).